Começamos a frequentar a feira de arte e foodtrucks de Alphaville assim que nos mudamos para São Paulo, no começo de 2021.
Da gravidez ao primeiro ano do Daniel, escolhíamos uma sexta ou sábado à noite para caminhar distraidamente por ela.
Observávamos os Lulus da Pomerânia, recusávamos alguns utensílios para polir couro (ou tirar bolinha de roupa), comíamos pastel e tomávamos caldo de cana. Nada além disso.
Se você me perguntasse o que havia de especial nessa feira (a ponto de me fidelizar e gerar um pico de adrenalina só de pensar em “dar um pulinho lá”), há alguns meses eu não saberia dizer.
A certeza que eu tinha era de que o apreço não era particular. Eu amava feiras de rua e ponto, fossem elas quais fossem. A origem desse amor, no entanto, eu precisei me tornar feirante para realmente entender.
Durante toda a minha gravidez (incluindo a véspera do parto) e ao longo dos primeiros 10 meses do nosso bebê Daniel, repetimos nosso programa como simples “clientes distraídos” da feira.
De cliente a feirante num instante
Então, do dia para a noite, tudo mudou: consegui um espaço de expositora nessa mesma feira e, numa jornada um tanto descontextualizada, comecei a vender bolos no pote em um das barraquinhas.
Meu sentimento foi parecido com quando fiz amizade com tripulantes de um navio de cruzeiro alguns anos atrás. Acostumada com a experiência de passageira (em que tudo é festa), conhecer os bastidores foi um choque de realidade para mim.
Esse mesmo choque eu senti quando me vi do outro lado do balcão, desejando desesperadamente que alguma daquelas pessoas caminhando pela feira me desse alguns instante de atenção (e, quem sabe, comprasse de mim).
Da mesma maneira que eu passei dezenas de vezes na frente daquelas barracas sem nem olhar para o lado (minimamente interessada em qualquer produto que tentavam me empurrar), agora faziam o mesmo comigo.
A sensação de estar do outro lado
Enquanto eu me via tentando orquestrar um turbilhão de sentimentos cada vez que alguém me ignorava, meu pensamento recorrente era: “Meu Deus, que vida fácil você tinha…”
“Tinha” não, “tem”.
Porque por mais que eu estivesse levando a sério a venda dos bolinhos, a renda da minha família em hipótese alguma dependia dos meus resultados na feira. Aquilo, para mim, era como um simples experimento.
No instante em que eu vendi um bolo no pote por 12 reais (que eu tinha levado horas para fazer) e gastei o mesmo valor numa garrafinha de água de côco para o Daniel, percebi que eu tinha esquecido o valor do dinheiro.
Como feirante, eu precisava lidar com várias atribuições: chegar cedo e sair tarde; montar e desmontar barraca; produzir a mercadoria (um universo à parte); lidar com os clientes; lidar com os organizadores da feira; lidar com meus medos, inseguranças e frustrações…
…e eu só conseguia pensar em como era fácil a vida dos clientes, cuja única preocupação era desfilar por ali com suas carteiras cheias de dinheiro e escolher o que bem quisessem.
Eu era um desses clientes.
Mas ao mesmo tempo em que eu desejava desesperadamente voltar para essa posição – a do cliente, sem qualquer peso ou obrigação de vender para sobreviver –, eu me via tomada por uma lealdade que praticamente dizia “isso não é justo”.
“Não é justo que você possa chegar na feira a hora que quiser, consumir o que quiser e simplesmente ir embora, como se sua vida estivesse ganha.”
Minha vida estava ganha.
Eu sabia que eu tinha trabalhado muito (e por muitos anos) para conquistar o que tenho hoje, então extravasava qualquer simples questão de merecimento.
De onde vinha a culpa, então?
O que não saía da minha cabeça era: aqueles vendedores da feira também vinham trabalhado muito (e por muitos anos).
Por que eu, então?
Por que EU era a cliente?
Essas perguntas (e as reflexões que vieram delas) me provocaram a ponto de me colocar em ação para criar um treinamento inteiro ensinando o que eu faço para que outras pessoas pudessem ter a oportunidade de ganhar tanto dinheiro quanto eu – algo que eu vinha postergando há anos.
Só que a maior lição de tudo isso veio um pouco depois, à medida que eu gravava uma aula chamada “Sua fonte inesgotável de recursos”.
Sua fonte inesgotável de recursos
A verdade é que EU nunca precisei ser feirante, mas meu avô precisou.
Ele morreu antes de eu nascer, então o que sei dele veio de algumas poucas histórias que meu pai costumava me contar.
Segundo ele, meu avô fazia sandálias artesanalmente e vendia numa feira de rua em Goiás. Todo domingo, ele estava lá.
Meu avô passou por tudo que um feirante costuma passar. Por tudo aquilo que eu só tive um leve vislumbre na minha curta experiência como feirante.
Meu avô não foi um grande sucesso como feirante. Ele não ficou rico. Até seus últimos dias de vida, seguiu aquela mesma toadinha: ele, as sandálias e a feirinha.
Para ele, era trabalho de verdade. O lucro era sustento, não virava água de côco. Ele não teve a oportunidade de ser apenas “um cliente distraído”.
Hoje, como mãe, sei que está tudo bem assim. Se por nós a motivação de acordar cedo é pequena, para nossos filhos (e netos, tenho certeza), todo esforço vale a pena.
Sei que meu avô trocaria qualquer conforto pessoal para que seus filhos, netos e bisnetos tivessem a oportunidade de viver uma vida tranquila a partir de tudo que ele deixou, seja material ou na forma de exemplo.
Eu faria o mesmo.
Claro que nem sempre a gente é tão racional assim.
Talvez meu desejo de experimentar o que ele passou (mesmo que como capricho e não por obrigação), tenha sido meu jeitinho meio bobo e inconsciente de demonstrar amor e gratidão. Se ele pudesse ter acompanhado minha saga, teria se divertido.
Agora, é muito claro para mim.
Minha vida é consequência de muito trabalho
Minha vida é a consequência de cada suor, lágrima e esforço de cada um daqueles que vieram antes de mim; que chegaram cedo para montar a barraca e lidaram com tudo que tiveram que lidar…
…que carregaram um piano pesado para que eu hoje eu pudesse simplesmente me sentar e apreciar a música.
Exatamente por ter sido assim, hoje eu posso ter uma vida leve e, apenas duas gerações depois, ser “a cliente distraída”.
É verdade que, eventualmente, ainda preciso lidar com alguns sentimentos confusos, como um certo desejo de “dificultar só um pouquinho” ou “passar só um pouquinho de aperto” quando minha vida parece fácil demais.
(De onde a gente tira essa criatividade bizarra na hora de demonstrar gratidão?)
Mas hoje consigo olhar para o outro lado do balcão com respeito e toda a dignidade devida, sabendo de sua importância e impacto para as próximas gerações.
Olho para o meu filho e sei que ele será um cliente ainda mais distraído que eu. Um bisneto de feirante, um louco apaixonado por feirinhas (sem nem entender direito o por quê).
Isso me deixa encantada.
A feirinha me deixa encantada.
Eu me sento distraída com a minha família e experimento algo que parece simples e efêmero, mas que gera desdobramentos complexos e duradouros: a vida acontecendo à minha volta.
